domingo, 20 de maio de 2012

"Vivemos realidades distintas"

Presidenta da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP), a promotora de Santa Catarina Helen Sanches não tem dúvidas: os sistema sócio-educativos podem recuperar os menores infratores, desde que desenvolvidos a partir de uma política que contemple o próprio adolescente e sua família. "A proposta sócio-educativa contempla construir com esse adolescente um projeto de vida, um projeto de vida que ele nunca teve e por isso chegou na unidade", destaca a promotora, que esteve em Natal para participar do 24º Congresso Nacional Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude. 
A Presidenta da ABMP acredita que os sistemas socioeducativos podem recuperar os menores infratoresRodrigo senaA Presidenta da ABMP acredita que os sistemas socioeducativos podem recuperar os menores infratores

O menor que assalta pode ser recuperado no sistema que está posto no Brasil? "Eu não só acredito como tenho convicção, comprovada por experiências exitosas, de que onde as unidades funcionam adequadamente o índice de reincidência é quase zero", responde, de pronto, Helen Sanches. A promotora observa que o trabalho de contemplar as políticas para o desenvolvimento e a garantia dos direitos da criança e adolescente passa, necessariamente, por uma prioridade da gestão. Para ela, entre asfaltar uma rua e construir uma unidade sócio-educativa, a prioridade é atender a unidade. Entre construir uma ponte e uma creche, a prioridade deve ser a creche.

A convidada de hoje do 3 por 4 traz uma verdadeira lição sobre a temática dos direitos da criança e do adolescente e se mostra uma entusiasta da proposta de recuperar menores infratores a partir de um projeto amplo e que contemple a criança e a família.

O que pensa e como analisa a promotor Helen Sanches:

Onde está mais sequelado os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes?

Nós temos um contexto em que não falamos de uma infância, mas de várias infâncias que coexistem na realidade brasileira. A infância pobre, a rica, a que em acesso a direitos e bens de consumo, a infância que tem direitos negados e não tem acesso a políticas mínimas de educação, assistência. E aí nós vamos desde a infância negra, indígena, a infância dos moradores atingidos pelas obras, das famílias atingidas pelas obras por evento do Programa de Aceleração do Crescimento, ou das barragens. Nós temos realidades muito distintas no contexto nacional que evidencia, de uma certa forma, que não temos políticas que dêem conta nem das necessidades básicas, essenciais, que é saúde, educação, convivência familiar, direito a profissionalização, ao crescimento, ao desenvolvimento saudável, a alimentação, a situações de políticas necessárias para recompor alguma situação de violência, de negligência. Cada região apresenta algumas especificidades no que diz respeito quais são as maiores ou mais freqüentes violações dos direitos da criança, mas também temos realidades que são generalizadas no país. Nesse caso é a questão da educação, creche pré-escola para as crianças de zero a três anos. Foi anunciado mais um pacote do Governo Federal para ampliar a oferta nas creches para as crianças. Essas mães não conseguem trabalhar porque não tem onde deixar os filhos e acabam sobrevivendo com os benefícios de transferência de renda, como o Bolsa Família. Essas crianças quando ingressam no ensino fundamental não tem garantia do sucesso escolar. Nós temos elevados índices de que a criança consegue se formar, mesmo aqueles têm deficiência de aprendizagem que compromete a inserção no mercado de trabalho, como a questão dos analfabetos funcionais. Temos uma realidade e realidades distintas e precisam ser observadas na perspectiva de que infância estamos falando. 

Embora a senhora afirme que as realidades são distintas, os direitos são iguais.

Uma criança que estuda em escola particular e pode freqüentar natação, judô, por exemplo, tem o mesmo direito da criança que mora em um grupo social, que não tem acesso a saneamento, moradia digna? Essa foi a pauta do evento (de Natal). Precisamos trazer a justiça para a realidade de um atendimento que não pode se focar só na justiça. Ela (a justiça) não pode esperar que a criança tenha seu direito violado para só então atender essa criança. Ela (a justiça) precisa se focar na prevenção, atuando na promoção dos direitos, sem esperar que chegue o processo no fórum. Para isso a justiça precisa atuar em rede. Existe uma rede de proteção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente chamado Sistema de  Garantias de Direitos compostos por vários órgãos e instituições públicas e privadas, que prestem algum atendimento a criança e adolescente, e que precisa atuar na promoção dos direitos e na defesa quando o direito for violado.

A senhora defendeu postura proativa do judiciário, com essa rede de ligação entre os órgãos. De que forma isso pode se dar?

O que estamos propondo é que a Justiça não pode ficar esperando que a criança seja vítima de uma violência sexual para só depois proteger a criança. Precisa estar junto com o Conselho Tutelar, com a escola, com o Ministério Público, Defensoria e Magistratura. Chamar o Conselho Tutelar, saber quais são as realidades da sua infância em seu município. É preciso estabelecer prioridades. A pergunta é como a Justiça pode agir na promoção do Direito? Ou seja é preciso promover o direito da criança de ter uma convivência familiar, crescer na sua família e essa família ser acompanhada, orientada para tratamento, sem esperar que os pais cometam algum tipo de violência para depois colocar a criança no abrigo e ela ficar lá até atingir a maioridade. Quando a gente fala da Justiça na rede a gente parte de uma postura que deve ser horizontalizada, não existe hierarquia. Ou seja, o juiz em relação ao promotor, em relação ao defensor. E nem dessas instituições da Justiça com delegacias, conselhos, com programas do município, programa de atendimento sócio-educativo. O que deve haver é horizontalização do sistema para começar a avançar. É preciso o atendimento adequado. É preciso tornar vivo os direitos da criança. Muitas vezes não se precisa só de recursos, precisa de boa vontade, as pessoas conversem e se conheçam as suas atividades. A gente precisa se ajudar para o Direito se tornar efetivo e a gente não fique passível diante de circunstâncias que, claro, não dependem só da Justiça, mas de um esforço coletivo e a gente possa de fato tornar essa lei uma realidade. Precisamos trabalhar sempre na perspectiva de não adianta atender a criança sem atender a família. O Estatuto fala de medidas de proteção para os pais. O sistema único de assistência social estabelece que a centralidade da política é a família. Essa família que vai acolher a criança e garantir os direitos da criança. Precisa ensinar ao pai que ele deve impor limites, acompanhar a vida escolar, que ele não pode bater. Precisa acompanhar de fato a família.

E onde entra a responsabilidade dos gestores públicos?

A política de atendimento previsto no Estatuto é compartilhada. A gente fala do tripé da responsabilização que é família, sociedade e Estado. Família tem suas responsabilidades na garantia dos direitos da criança e do adolescente, garantir o desenvolvimento. A sociedade tem responsabilidade, como a participação no Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente. Eu costumo dizer que é muito mais cômodo ficar assistindo televisão do que participar de um programa de enfrentamento ao uso do craque. As pessoas pensam que não é problema delas, mas do prefeito, do vizinho, do delegado. O Estado tem sua parcela de responsabilidade porque cabe ao Estado implementar as políticas públicas de atendimento a população. É papel de todos exigir que os gestores façam sua parte, mas precisamos chamar a sociedade para esse debate.

O Rio Grande do Norte, a exemplo de outros Estados, tem um problema sério com os centros de reabilitação dos menores. Esses centros estão falidos?

Se tem conhecimento que o Rio Grande do Norte apresenta situação calamitosa no sistema sócio-educativo, muitas ações vêm sendo empreendidas com poucos resultados efetivos. Há esforço da Justiça, do Ministério Público, da Defensoria e do Poder Judiciário no sentido de exigir dos gestores públicos a reforma de unidades e não vem acontecendo porque se precisa que tenha um esforço político. Seja município ou Estado eles tem dificuldade orçamentária, mas importante destacar que a Constituição define que as políticas de atendimento a criança e adolescente elas têm prioridade absoluta na destinação dos recursos públicos. Entre asfaltar uma rua e construir uma unidade sócio-educativa, a prioridade é atender a unidade. Entre construir uma ponte e uma creche, a prioridade deve ser a creche. Não cabe ao prefeito dizer que vai asfaltar rua, fazer festa em detrimento da creche. Isso precisa ser cobrado. A cobrança não passa só por ações a serem ajuizadas. Esse é um tema que depende mais do esforço político. É preciso evitar judicializar e deixar que a Justiça simplesmente resolva. Por que não há vontade política de sentar e resolver o problema? É preciso avançar nessa perspectiva ou dar alguns passos para resolver o caos do sistema no Estado.

A senhora acredita que esse sistema de privação da liberdade do menor resolve? O menor que assalta pode ser recuperado no sistema que está posto no Brasil?

Eu não só acredito como tenho convicção, comprovada por experiências exitosas, de que onde as unidades funcionam adequadamente o índice de reincidência é quase zero.

A senhora está falando de onde?

Estou falando de Minas Gerais, algumas unidades do interior. Hoje temos uma lei no Brasil que instituiu o Sistema Nacional Sócio-educativo. A certeza que tenho é que unidade que funciona como presídio não reeduca. Não é para funcionar como presídio, não é para fazer privação de liberdade. A proposta sócio-educativa contempla construir com esse adolescente um projeto de vida, um projeto de vida que ele nunca teve e por isso chegou na unidade. Claro, isso não justifica a prática do ato infracional, mas a realidade dos adolescentes que estão nas unidades demonstram que eles tiveram todos os direitos violados ou não foram respeitados até o ingresso no sistema sócio-educativo. A família, a sociedade, não olhava para aquele menino e passou a olhar quando ele foi autor do fato grave. Então é nessa perspectiva que a gente precisa pensar. Quando a gente chega na unidade ele está privado dessa liberdade. Mas é na unidade que ele precisa ter oportunidade de construir um projeto de vida. A família também precisa receber atendimento. 



Fonte: Tribuna do Norte

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